O que podemos aprender com esse encontro?
Eu tenho um affair tumultuado com a moda. Ao mesmo tempo que me orgulho de sua coragem, me decepciono com sua alienação. Me emociono com sua habilidade de encantar pessoas e me revolto com sua ética de transformar sonhos em produtos. Essa complexidade é sedutora e cria um interesse genuíno pela capacidade da moda nos indicar mudanças estruturais na sociedade. Exatamente por ela não mascarar suas ambições, fica tudo ali, exposto.
Olhar para a moda é enxergar os medos e as aspirações de uma sociedade. Ao andar pelas ruas, físicas ou digitais, nos deparamos com a imagem do ser social. Um acumulado de sentidos carregado por um corpo.
Os padrões, fáceis de identificar, nos revelam as certezas, mas o interessante são os desvios na imagem. Uma, duas, um grupo de pessoas passa singelamente a incorporar novos símbolos, começa a usar um novo vocabulário – um estrangeirismo gráfico, uma gíria visual – e, com isso, revela que novos caminhos estão sendo traçados.
Um pingente, uma nova cartela de cor, uma tatuagem, um comprimento, um corte de cabelo, tem o poder de antecipar Tsunamis econômicos e políticos.
A maioria das pessoas quando fala de moda imagina roupas, mas roupa é um mero objeto. Moda é um sistema simbólico complexo, muitas vezes libertador e outras vezes perverso, que engendra muita coisa além do que é percebido nas vitrines. O historiador Eric Hobsbawn já se questionou sobre o talento premonitório da moda em um livro famoso chamado A “Era dos Extremos” de 1994: Ele escreve: “Por que estilistas de moda brilhantes, um grupo notoriamente não analítico, às vezes conseguem antecipar mudanças que estão por vir melhor do que os profissionais de previsão de mercado”. Essa, para ele, é uma das questões mais obscuras da história”. Mas talvez, não seja tão obscuro para quem estuda o sistema de moda e o entende como estrutura ideológica de grande parte da nossa sociedade. Afinal, vivemos na modernidade (ou em seus desdobramentos).
Sistemas são conjuntos de partes interconectadas que funcionam como um todo para atingir um determinado objetivo.
Cada componente de um sistema é influenciado e influencia, ou seja, uma parte não pode ser pensada independente de outra. Para pensar o sistema de moda ou qualquer outro sistema criativo, é necessário falar sobre meios de comunicação e novas ferramentas. Assim, desde pelo menos 3 décadas, é impossível pensar sistemas culturais e sua comunicação simbólica sem levar em conta os impactos das tecnologias digitais.
Mas falar sobre moda e tecnologia, não é tarefa fácil.
Apesar da moda ter gerado o império dos homens e mulheres mais ricos do mundo, o assunto parece não convergir com pautas sérias como Tecnologia. Por outro lado, pessoas de moda parecem esnobar as conversas mais profundas sobre tecnologia buscando um afastamento teórico, quando na prática profissionais de imagem são os principais “funcionários” da economia de dados. Apesar de trabalharem intrinsecamente juntos na estrutura, na superfície parece que pessoas de Moda e Tecnologia têm quase um campo magnético de repulsão natural. Tente visualizar estudantes de ciência de dados e estudantes de moda ou artes plásticas. Estéticas opostas e se a gente acredita que a estética é uma ética, subjetividades conflitantes.
Eu tenho um affair tumultuado com a tecnologia. Ao mesmo tempo que me orgulho de sua coragem, me decepciono com sua alienação. Me emociono com sua habilidade de encantar pessoas e me revolto com sua ética de transformar sonhos em produtos.
Trabalhar com moda e tecnologia é se manter em um campo de conflito na superfície, enquanto na estrutura esses campos nunca estiveram tão entrelaçados.
É importante que profissionais de moda comecem a se interessar por tecnologia e vice e versa. Apenas com esse cruzamento disciplinar conseguiremos preparar nossos profissionais para o futuro. Os motivos para as fricções presentes nesse encontro são menos óbvias do que aparentam. Para ir mais a fundo do que o senso comum, precisamos falar sobre ética e subjetividade.
A ÉTICA DA MODA
Para SER da moda (compartilhar realmente do espírito da coisa) você precisa ter um quê de deboche. Bolsa pombo, vestidos milionários inspirados em sacos de lixo, roupas rasgadas vendidas por 6 dígitos, uma cabeça de leão em tamanho real usada como acessório. Não dá para levar as coisas muito a sério, nem se apoiar no bom gosto. Para ter a porta aberta no seleto grupo de criativos respeitados pelos amantes da moda, você precisa ter um pé na frivolidade, na permissividade – pois a ideia é desafiar o status quo. Se você demonstrar demais que você quer pertencer, você perde; se você bajular demais, você perde; se você se pendurar em monogramas; você perde; se você desafiar demais as estruturas; você perde.
SER da moda não tem a ver com dinheiro, mas com uma consciência quase cruel do mundo.
Agora, ESTAR na moda é uma questão de agenciamento, é um talento de comunicação. Ainda hoje, se tornar relevante tem a ver com sentar com as pessoas certas, nos lugares certos, trazendo, no momento certo, assuntos que interessam ao mercado. Trazer algo que encante, que seja esteticamente excitante, que não seja tão transgressor ao ponto de assustar e que, principalmente, dê rentabilidade a diversos agentes do sistema. Com a entrada das redes sociais, no entanto, compreender o interesse dos algoritmos se tornou fundamental para ESTAR na moda. Esse é um trabalho que requer talento em encontrar padrões e saber repeti-los trazendo apenas um pequeno desvio que passe a ideia de novidade. Diferente do SER da moda, que busca um reconhecimento pela sua originalidade e sensibilidade artística,
o ESTAR na moda busca métricas. Em movimentos planejados, percebe o que mais entrega resultado e se modifica para atender.
A LIBERDADE E OS PADRÕES
O SER e o ESTAR na moda são atores de um mesmo sistema e por isso se influenciam e são influenciados. De um lado a busca por uma liberdade, um incômodo com os padrões estabelecidos, uma coragem suicida; o SER. Do outro, a busca por resultados, o abafamento existencial e a impossibilidade de lidar com o fracasso; o ESTAR. O SER se incomoda com o mundo padronizado das redes, o ESTAR vive do padrão. O SER questiona as regras, o ESTAR às segue da melhor maneira.
O maior problema que o sistema de moda enfrenta hoje é como equilibrar a existência de criadores autorais, realmente visionários, em um mundo que cada dia privilegia mais o consumo de padrões algorítmicos. Pois o SER da moda vai se opor às regras e o algoritmo entrega quem segue suas diretrizes.
A principal diretriz de qualquer negócio é trazer mais clientes para a loja ou plataforma. No caso das redes sociais, pessoas ativas, engajadas, geram mais dados e por isso são clientes melhores. Para logar, curtir, compartilhar, nada mais eficiente que trazer à tona as dores da sociedade. Todos temos algo engasgado. Um vazio procurando uma resposta, um tédio procurando uma revolta, uma dor procurando um acolhimento. Nas redes, a revolta precisa de um propósito. Com um objetivo para a movimentação e engajamento, novos clientes são atraídos e fidelizados. Não importa o assunto, o posicionamento, o que importa são métricas positivas. Os algoritmos premiam quantidade e não qualidade, gerando um problema para novas ideias, perspectivas que, pelo seu ineditismo, não geram resultados rápidos, engajamentos fáceis.
O sistema de moda – assim como todo o sistema cultural – se renova a partir da emergência de subculturas.
A subcultura, nada mais é do que uma ação coletiva estética que surge e cresce à margem dos padrões culturais vigentes trazendo narrativas de oposição.
Para não ficar muito abstrato, podemos imaginar um círculo, de mais ou menos 4 centímetros de diâmetro, desenhado no centro de uma folha de papel A2 em branco. Dentro do círculo, estão as regras do sistema vigente, os assuntos já aceitos e as ideias já comercializadas. Em todo o espaço livre ao redor, habitam as possibilidades, as subculturas, as novas ideias. Nessa periferia do sistema estabelecido, pessoas talentosas se encontram, se curtem, começam a se frequentar e esse momento potencializa sua criatividade, dá coragem de realizar coisas – na grande maioria das vezes sem plano ou objetivo de negócio definido – apenas pela sensação de SENTIDO, de conforto existencial, de ter encontrado o seu lugar e se sentir forte por isso. Ser admirado e admirar as pessoas a sua volta, pessoas dispostas a defender uma visão de mundo comum, visão essa que desafia as normas estabelecidas pelo sistema naquele presente.
Desses encontros, de geração em geração, surgem revistas independentes, movimentos, sons, marcas, grupos de arte, novos estilos e nos últimos tempos perfis em redes, comunidades em aplicativos, mundos virtuais. Dependendo de sua capacidade de gerar audiência, algumas SUBCULTURAS entram para os livros de história, outras caem no esquecimento, mas na verdade isso não importa.
Esses momentos são transformadores, pois criam uma fruição artística rara em um mundo pautado pelo utilitarismo e pelo propósito.
Obviamente, moda não é apenas fruição artística. Também é negócio e resultados. Lucro. No entanto, ela não é apenas isso. O sistema de moda está desequilibrado e grande parte disso acontece por uma falta de compreensão das ferramentas e estratégias das novas tecnologias.
Os grandes momentos da moda e da arte não aconteceram a partir de um plano de negócio bem estruturado e sim de um encontro de pessoas que se sentiram incomodadas o bastante para atacar o padrão estabelecido.
Como diria Yohji Yamamoto: “Você precisa estar muito puto para querer mudar as coisas”.
Hoje há espaço para muitos incômodos e reclamações, elas apenas não podem existir fora das redes e passar despercebidas pela análise dos algoritmos. Pode se exigir tudo e tudo vira produto consumível imediatamente. As revoltas são lapidadas e versões menos agressivas ranqueadas para ESTAR na moda.
Eu poderia dizer que o SER da moda é levado pela frivolidade e o ESTAR na moda é regido pelo propósito. E que nos últimos tempos o SER perdeu grande parte de seu espaço no sistema de moda por causa da subjetividade do utilitarismo. Isso é muito ruim para quem não deseja viver em um loop retroalimentado pelas mesmas “novidades”.
UTILITARISMO DA TECNOLOGIA
Diferente da fruição despropositada que plaina no coração de todo o artista “puto” quando jovem, na Tecnologia: “sem propósito, não há negócio”. Independente da sua área, eu tenho certeza que você já ouviu a palavra “propósito” sendo repetida por palestrantes de TED. Talvez o que você não saiba é que o termo tomou proporção a partir do livro do publicitário inglês Simon Sinek, chamado “Comece pelo Porquê”, que foi publicado em 2009 e que este livro virou a Bíblia dos CEOs do Vale do Silício. Não que a motivação pessoal em busca da eternidade fosse novidade na California. As biografias dos magos das bigtechs estão cheias de referências que colocam os “Steve Jobs e Bill Gates” da vida como pastores dos novos tempos. Mas o propósito teve a capacidade de infiltrar a ética dos negócios em muitos discursos artísticos e isso foi uma novidade viralizada de forma impressionante junto com o boom das redes sociais e seus algoritmos. De uma hora para outra, não bastava ser artista, não bastava criar. Você precisava ser um artista com propósito.
Não me entenda mal. Eu acho o “Comece pelo Porquê” um bom livro para negócios e empreendedores. Tem aquela fórmula de auto-ajuda perfeita para virar Best Seller de aspirantes a líderes: afirmar coisas óbvias, mas que vc precisa reescutar de tempos em tempos; usar palavras pouco precisas para cada um interpretar a partir da sua verdade; não demandar muito conhecimento prévio e, claro, ser otimista. De fato o livro é motivador e você termina com a real sensação de que você descobriu formas simples de fazer as coisas darem certo. Na prática, a vida se impõe e mostra que tudo é bem mais complexo do que parece, mas o importante é terminar estimulado.
Os sinônimos de propósito são: objetivo, meta, alvo, determinação, finalidade, e no meu dicionário, suicídio artistico.
A palavra propósito foi facilmente difundida nos mercados criativos globais. Nada mais interessante para o sistema do que você ser um autônomo obstinado, que trabalha muito, ganha pouco, mas que levanta todos os dias com a certeza que vai mudar o mundo com sua nova marca, obra e serviços conscientes. Com o propósito, o trabalho deixa de ser uma obrigação na sua vida. Uma rotina, pouco prazerosa, necessária para a manutenção do sistema social e para a sua triste sobrevivência financeira. Nesse discurso, o trabalho vira A sua vida. Todos as delícias inúteis, os hobbies despretensiosos, as coisas que você gosta de fazer e que ninguém sabe, passam a ser obstáculos, distrações que desviam o tempo que você deveria estar trabalhando para alcançar o seu propósito. O propósito também justifica a busca pela riqueza. Uma empresa pode mostrar para o mundo que apesar de ser um mega conglomerado de produção em massa, seu propósito é salvar as florestas e promover a diversidade – o dinheiro é consequência.
A BUSCA PELO EQUILÍBRIO
O problema do propósito não está na palavra ou nos objetivos que cada um tem para sua própria vida. Esse contraponto entre “frivolidade” e “utilidade” é importante para mostrar que o grande problema em aproximar a tecnologia da moda vai além do uso das ferramentas e sim, atravessa, um problema ético. O mundo das tecnologias digitais que vivemos hoje, foi forjado por uma subjetividade utilitarista. O que vale são as métricas, os BIs, as análises, as previsões. Você vale o quanto você engaja.
O mundo da moda vive o dilema de ter consciência sobre seu próprio sistema e defender espaços de “desvelamento”, a “busca de uma verdade existencial”, de um sentido despropositado – a defesa de um SER artístico.
A cada novo talento que desponta da margem, a esperança de um mundo livre das amarras sociais e da mercantilização da vida se renova.
A dinâmica de esfacelamento das utopias não é novidade. Poucos nomes apontados como “novos talentos” por concursos e mídia conseguem sobreviver ao mercado depois de alguns anos de luta. As novas tecnologias, no entanto, trazem um novo tempo e desafios. Hoje, grandes negócios de moda se apoiam fortemente em tecnologias de captura e análise de dados. O encontro com a inteligência artificial generativa cria produtos e interações cada vez mais personalizadas e sugestivas. Os recursos de economia descentralizada (Blockchain) facilitam negociações paralelas no mercado mundial. Ou seja, quem detém o conhecimento da tecnologia fica cada vez mais forte. Enquanto isso, criadores – artistas sem cabeça utilitária, perdem espaço. O SER da moda é punido, o ESTAR na moda, premiado.
A resposta para o equilíbrio poderia ser movimentar artistas para se aprofundarem nas ferramentas da tecnologia e defenderem o seu espaço. No entanto, isso seria incluí-los na mesma lógica de performance e utilidade que continuaria a minar as possibilidades de real renovação de repertório.
ENTÃO, O QUE PRECISAMOS?
Precisamos de profissionais que conheçam os dois campos e consigam, com esse conhecimento, equilibrar as éticas do sistema de moda (arte e cultura) e da tecnologia. Esse profissional será aquele que compreenderá os benefícios e os problemas dos dois mundos e conseguirá equilibrar expectativas. Esse profissional será aquele que saberá mostrar para o mercado que sem respeitar o tempo da inovação, o negócio de moda passa a ser apenas uma ferramenta logística com funcionários emocionalmente frustrados e clientes desestimulados. A criatividade não se esgota, mas nos últimos tempos sentimos o reflexo de sua falta de oxigênio promovido pela demanda de resultados imediatos. Para quem gosta de arte, seja ela expressa na moda, na música, nos palcos, nos livros, essa invasão é o pior dos mundos.
O mercado exterior há muito entendeu essa necessidade de oxigenação e apesar de estar longe de ser perfeito, há um investimento coletivo de grandes empresas em concursos, programas de suporte, residências que criam espaços de liberdade criativa não apenas para a moda, mas para seres criativos da tecnologia. que usam ferramentas digitais, programação, sensores para nos apresentar novos caminhos de compreensão da realidade.
A tecnologia deve servir para melhorar e facilitar a vida das pessoas, mas nos últimos tempos é difícil desassociá-las de excesso de poder e problemas sociais.
Você perceber a importância de um tema e querer saber mais sobre ele, não significa ter um posicionamento passivo. Tanto na tecnologia quanto na moda, se você passar por cima de todas as suas críticas ao sistema, por querer pertencer, você se torna apenas uma peça descartável.
Em tempos de cancelamento e instabilidade financeira, criticar virou território sensível a ser evitado e isso não poderia ser pior tanto para a moda quanto para a tecnologia.
Precisamos urgentemente de uma nova mentalidade para toda a nossa cultura, seja a da criação, seja dos negócios. Essa mudança virá através de pessoas que compreendem as novas tecnologias a fundo (pois elas irão fornecer as novas bases de trabalho), mas que compartilham de um conhecimento multidisciplinar que não as faça olhar apenas para métricas de resultado imediato. Pensamento coletivo e a longo prazo que preze pelo equilíbrio entre dinheiro e existência. Em mundo de alta performance, pessoas que criem espaços para outras respirarem.