Tudo quanto existe, tudo que representa Espírito para Espírito, é propriamente uma Roupa, um Traje ou Vestimenta, vestida para uma estação, e a ser posta de lado. Assim, nesse importante assunto das ROUPAS, devidamente compreendido, inclui-se tudo que o homem pensou, sonhou, fez e foi: todo o Universo exterior e o que ele contém nada é senão Vestimenta; e a essência de toda Ciência reside na FILOSOFIA DAS ROUPAS.¹
As roupas são o primeiro artefato cultural criado pelo ser humano que se tem registro na narrativa bíblica (Gênesis 3.7). Por meio de pinturas, vasos e esculturas, historiadores e pesquisadores conseguiram ter uma ideia de como era o vestuário em determinados períodos históricos, bem como saber qual a sua finalidade em determinadas sociedades, qual a sua relação com o desenvolvimento cultural e a maneira como se deu no Ocidente a evolução da indumentária e a história da moda.
Temos de reconhecer que a criação e o desenvolvimento das roupas ao longo da linha do tempo da história têm estrita relação com os desdobramentos das funções cognitivas humanas, dado o fato de que o homem necessitou criar mecanismos para proteger sua própria estrutura corporal de fatores externos que ameaçavam a sua existência. A criação desses mecanismos e suas funções próprias nos mostram o progresso humano relativo aos processos técnicos, como no uso das fibras têxteis naturais e animais, por exemplo. Para tal uso foi necessário o aprimoramento de instrumentos e técnicas que gradualmente tornaram possível o desenvolvimento do vestuário. Vemos então que, ao estudarmos a história da moda, é possível verificar dois eixos principais: a história da tecnologia e a história da arte.²
A verdade é que o avanço da indumentária e da moda sempre esteve ligado ao progresso tecnológico nas sociedades. Se pensarmos a origem da tecnologia, veremos que ela acompanha a história dos tecidos, quando ferramentas foram criadas numa tentativa de extensão das mãos humanas.³ Os desdobramentos históricos disso inevitavelmente levaram o mundo à Primeira Revolução Industrial e à criação da máquina de fiar de James Hargreaves.⁴ Ao que parece, as roupas auxiliaram no design do que vemos hoje como a fisionomia do Ocidente. Tais observações se tornam ainda mais preponderantes quando por tecnologia compreende-se “um conjunto de processos, métodos, técnicas e ferramentas relativos à arte, indústria, educação etc”,⁵ assim como a “aplicação dos conhecimentos científicos à produção em geral”.⁶ Com base nessas definições, podemos considerar a origem das roupas na narrativa judaico-cristã como o primeiro uso compreensível de tecnologia para a criação de algo.
Com base nessas definições, podemos considerar a origem das roupas na narrativa judaico-cristã como o primeiro uso compreensível de tecnologia para a criação de algo.
Dito isso, proponho com este ensaio uma reflexão sobre o lugar da moda na sociedade da informação, validando a maneira como o vestuário permanece em constante diálogo com a tecnologia, assim como com a ciência e a filosofia. Tendo em vista que os processos tecnológicos continuam a avançar a passos largos, questiono como ficará o papel da moda e do seu capital cultural frente aos desdobramentos de sistemas inteligentes, como no caso da Inteligência Artificial.
Elisabeth Wilson, na Inglaterra, e Gilles Lipovetsky, na França, publicaram, em 1987, os primeiros ensaios críticos sobre a evolução da moda nos séculos 19 e 20. Por tradições e caminhos diversos, ambos deslocaram o foco do debate teórico da distinção social para a questão dos estilos de vida.⁷ Novamente se faz necessário deslocar o foco para a discussão que hoje se dá em torno do futuro da moda e do desenvolvimento cultural promovido por ela. Necessariamente, a moda pressupõe o uso das faculdades cognitivas no desenvolvimento do exercício artístico que ela reivindica. Estilistas, designers, produtores de moda e modelos: qual lugar esses papéis hão de ocupar em uma cadeia onde inteligências programadas irão criar no lugar do homem? Reflito sobre o lugar das fast-fashions⁸ na história da moda e demonstro que há uma similaridade aparente com os softwares de Inteligência Artificial para criação de imagens atualmente. Também questiono quais aporias se formarão em torno do papel da criatividade humana e da sua contribuição para a estética e a beleza quando a produção artística for perfeitamente realizada por enormes bancos de dados. Quais avanços a Inteligência Artificial pode de fato trazer quando olhamos para as novas maneiras que ela propõe de lidar com a humanidade no seu papel de desenvolver um capital cultural artístico. Como diria a minha mãe: “precisamos ir por partes” para compreender como tudo isso se dá na prática.
O lugar das roupas no desenvolvimento cultural
A moda tem sido um dos fenômenos mais influentes na civilização ocidental desde o Renascimento.⁹ Compreendê-la contribui para um vasto entendimento do mundo que nos circunda no que tange não apenas o âmbito individual, mas histórico, econômico, cultural e político. Todas essas áreas juntas evidenciam o que se denomina pensamento social. Sendo assim, apreender o significado do ato de vestir auxilia na compreensão dos conjuntos de valores estabelecidos dentro das diversas sociedades. A moda colabora não apenas para a formação do conceito estético dos indivíduos, mas para a elaboração do juízo de valor. O filósofo norueguês e professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Bergan, Lars Svendsen, defende a importância de se entender o lugar da moda no todo social. Porém, de maneira precisa, ele assevera o espaço que esse fenômeno deve ocupar no meio dos círculos filosóficos:
[…] Uma compreensão da moda deveria contribuir, portanto, para uma compreensão de nós mesmos e de nossa maneira de agir. Apesar disso, ela foi praticamente ignorada pelos filósofos, talvez porque se pensasse que esse, o mais superficial de todos os fenômenos, dificilmente poderia ser um objeto de estudo digno para uma disciplina tão “profunda”. Mas se a filosofia deve contribuir para nossa autocompreensão, e se a moda realmente foi – e é – tão influente quanto afirmo, ela deveria ser levada a sério como objeto de investigação.¹⁰
A moda colabora não apenas para a formação do conceito estético dos indivíduos, mas para a elaboração do juízo de valor.
É necessário pontuar que há um desprezo da comunidade científica pela moda, que seria considerada superficial ou então a expressão de uma manipulação social que visa sustentar o consumo de maneira artificial.¹¹ Contudo, é necessário reconhecer que a indústria da moda é parte das indústrias produtoras de cultura, e isso se explica por meio do seu próprio termo. “Moda”, do latim modus, designa a maneira de fazer, de se operar ou conduzir algo. Embora historicamente relacionada ao vestuário, o significado do termo é muito mais amplo e inclui muitas outras esferas da vida. Necessariamente, a palavra modus carrega em sua concepção uma referência ao indivíduo que conduz o seu próprio modo de ser. Contudo, essa noção de indivíduo nem sempre foi assim, e surge a partir da formação moderna dos Estados-nação. A formação desses Estados pressupunha um povo pertencente a determinado território geopolítico e detentor de costumes mais ou menos parecidos. Como lembra Zygmunt Bauman, o Estado-nação, segundo Giorgio Agamben, é um Estado que faz da “natividade ou nascimento” o “alicerce de sua própria soberania”.¹² A noção de indivíduo nasce com a modernidade; e a moda, com a noção de indivíduo.
No centro da visão de [Georg] Simmel, e, portanto, do seu mundo e da compreensão que ele tinha de seu próprio lugar nesse mundo, sempre esteve o ser humano como indivíduo – “considerado portador de cultura e um ser geistig maduro, agindo e avaliando no controle total dos poderes de sua alma e ligado aos outros seres humanos na ação e no sentimento coletivos”.¹³
Assim sendo, destaco como as roupas passam a ser parte de um fator cultural determinante dentro das sociedades como objeto de diferenciação. A moda surgiu nas cortes de Borgonha, ou Itália, nos séculos 14 ou 15, durante o período chamado “Primeira Modernidade”.¹⁴ Na maneira como a conhecemos hoje, com mudanças regulares e não cumulativas,¹⁵ ela emerge historicamente da dinâmica social da época em que a burguesia vinha se elevando economicamente e tencionava se distinguir da aristocracia. A forma que encontraram de fazer isso foi através das suas vestimentas. Hoje, com a evolução da moda, a dinâmica de diferenciação se dá por meio dos chamados estilos pessoais. No cerne da contemporaneidade está o indivíduo dotado da sua extrema individualidade na qual as roupas colaboram para a expressão pura do eu que a veste.
Dessa maneira, juntamente com o nascimento daquilo que se considera cultura para a formação de um povo e consequentemente de uma nação, desponta a moda no horizonte europeu como um fator social visível de uma lógica interna invisível. Desde o seu nascedouro, a moda é detentora de cultura.
A prova disso estaria nos primórdios da Revolução Industrial. A partir da primeira máquina criada, a Europa passou a pensar e se relacionar com as roupas de maneira diferente, e isso porque o primeiro invento foi exatamente uma máquina de fiar. Mas não apenas isso, o desenvolvimento industrial mudou drasticamente a maneira do homem se relacionar com o todo social. As transformações no modo de produção eram inevitáveis olhando com atenção o curso da história, mas é interessante reparar como o início se deu por meio de um processo têxtil. Mais uma vez, a dinâmica do vestir e o lugar das roupas como algo para além de apenas cobrir corpos se manifesta aqui. A vestimenta entra como protagonista na história ocidental e dá início novamente a transformações, produzindo novas maneiras de se pensar e de agir no todo social.
Dito isso, há um aspecto no desenvolvimento cultural que não pode deixar de ser citado por estar em diálogo com a moda. Olhando para a narrativa escriturística, quando Adão e Eva pecaram, é descrito que eles produziram o primeiro artefato dentro do chamado mandato cultural: as vestes. Aqui, elas encontram o seu nascedouro, inseridas no relato judaico-cristão. A Bíblia, no livro de Gênesis, conta que Deus formou Adão e Eva do pó da terra (Gênesis 2.7) e que “eles estavam nus e não se envergonhavam” (Gênesis 2.25). Não vou me deter em explanar a nudez; o caso é que a sequência da exposição segue-se com a desobediência deles em face da ordem dada por Deus de não comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gênesis 2.16-17). A consequência imediata dessa desobediência mencionada em Gênesis 3.7 é que souberam, exatamente, que estavam nus. Por quê? Porque algo de inerente havia mudado em suas próprias naturezas. Imediatamente, a narrativa continua, dizendo que eles costuraram vestes de folhas de figueira para si (Gênesis 3.7). Aqui, as roupas cumprem o seu papel de expressar a condição na qual Adão e Eva se encontravam. Eles não eram mais as mesmas pessoas. A dimensão simbólica das roupas demarcam a separação entre quem eles eram e quem seriam a partir daquele momento, e isso dá respaldo para acreditarmos que as roupas, o vestuário e, consequentemente, a moda estão em constante diálogo com a representação do indivíduo no seu meio.
Podemos concordar com o crítico e semiótico Roland Barthes que as roupas são a base material da moda, ao passo que ela própria é um sistema de significados cultural.¹⁶ Agora, há uma segunda característica sobre as vestes que a Bíblia coloca em interlocução com a cultura: o ato de se produzir roupas está em estrita ligação com o trabalho artístico artesanal. Falaremos sobre isso a seguir.
A relação da moda com o capital cultural artístico
A separação entre as artes e os ofícios ocorrida no século 18 inseriu a costura decididamente nesta última categoria.¹⁷ Desde então, há uma perene discussão dentro dos círculos artísticos, que acontece de igual modo no interior das icônicas maisons,¹⁸ no que diz respeito à categorização da moda: estaria ela par a par com o que se considera arte? Ou a moda vem a se revelar como uma grande sanguessuga de uma categoria que não lhe pertence?
Para adentrar esse campo de discussão, primeiramente precisa-se voltar aos primórdios da alta-costura, ao início das maisons, como é mais correto articular:
Esse foi claramente o caso de Charles Frederick Worth […]. A carreira de Worth promoveu a “emancipação” do estilista, que deixaria de ser um simples artesão, inteiramente subordinado aos desejos do cliente, para ser um “criador livre” que, em conformidade com a visão romântica da arte, criava obras com base em sua própria subjetividade.¹⁹
O ofício de alfaiate era antes visto como algo capaz de apenas cobrir corpos. Não havia a necessidade, nem recursos e nem a cultura de se vestir para ocasiões diversas possuindo diferentes peças. A roupa cumpria somente a sua função de proteção. A questão é que, com o desenvolvimento da moda, elas passaram a significar muito mais, como visto anteriormente. Não que antes um artesão não fosse considerado um artífice no seu ofício, mas, com a ascensão da alta-costura, a moda passou a aspirar a ser reconhecida como uma arte de pleno direito.²⁰ Obviamente, continuaram a existir alfaiates que não objetivavam possuir grandes ateliês, mas a alta-costura estava em estrita correspondência com o trabalho manual desses artesãos. Dessa maneira, com Worth, os estilistas passaram a afixar etiquetas em suas peças, sendo essa uma forma de “assinar” suas produções à maneira dos artistas. Paul Poiret – outro grande nome e pioneiro na área – em 1913 declarou categoricamente: “Sou um artista, não um costureiro”.²¹
Acontece que, quando se fala de moda, há uma clara necessidade de reconhecer que o espírito artístico detentor de poder para ditar tendências nasceu com a haute couture.²² Criações em escala artesanal de modelos exclusivos, feitos sob medida e para um público seleto. Tais peças possuíam um alto valor de mercado em virtude do grau de conhecimento e das habilidade necessários para a criação dos modelos. Porém, apesar de todo esse reconhecimento, existem dois grandes motivos no decorrer da história que fazem com que a moda não seja reconhecida na academia como arte propriamente dita. O primeiro deles está em sua associação com o mercado e o valor comercial no qual o prêt-à-porter²³ é seu carro chefe. Esse conceito foi responsável pela difusão da moda e pela adequação dela aos consumidores, já que o que se tinha antes era uma moda “artesanal” feita sob medida por alfaiates, como mencionado anteriormente. Por meio da produção industrial, o prêt-à-porter provocou uma revolução, pois tornou possível criar roupas em grandes escalas e não mais artesanalmente, fazendo-se mais acessível ao público, possuindo a marca e a assinatura do estilista em peças, mas sem o caráter de exclusividade antes dado pela alta-costura. A sociedade nessa etapa avançou e, juntamente com ela, a maneira de se relacionar e consumir as roupas.
O segundo motivo seria a dicotomia que a própria arte implantou ao longo dos séculos de que ela mesma não poderia tocar o ordinário: ela seria algo superior, transformando a maneira de se enxergar a realidade e se relacionar com o todo. Porém, quando falamos de vestuário, inevitavelmente fala-se de algo que tangencia o cotidiano. Há um valor simbólico especial da arte, e é exatamente esse valor que a torna intocável e distante dos seres humanos “comuns”. Museus, como instituições de arte, parecem ter uma habilidade “mágica” para transformar objetos comuns em algo mais elevado: a própria “arte”.²⁴ Apenas alguns poucos foram agraciados com o dom de se trabalhar com esse ofício e, dessa forma, ela se tornou algo para um grupo seleto de pessoas que podem manuseá-la e consumi-la. Apesar disso, houve ainda quem tentasse transpassar essa realidade, mesmo que sem sucesso, como foi o caso de Giacomo Balla:
Futuristas como Giacomo Balla trabalharam com moda para romper a barreira entre arte e vida cotidiana, mas a parte da moda que mais se aproximou da arte foi aquela que se afastou o máximo possível da vida cotidiana.²⁵
Há um critério defendido por autores como Adorno²⁶ que propõe que a inadequação para o uso, ou o não pragmatismo, seria a demarcação entre a arte e a não arte. Formulado originalmente por Kant em sua Crítica do julgamento (em 1790), nesse critério há uma distinção que tem a ver com a medida em que a experiência estética serve a qualquer propósito particular num sentido objetivo. Segundo Kant, para ser um genuíno objeto de arte, o objeto estético deve mostrar uma ausência de finalidade, ou seja, deve ser objeto de um julgamento puramente estético.²⁷
A realidade é que a academia não considera que a moda seja arte por esse e muitos outros fatores, mas ainda assim reconhece a capacidade que a moda tem de desenvolver um capital cultural na sociedade que é inerente somente a ela. Porém, nesse ponto penso que, fazendo um retorno novamente ao que as Escrituras Sagradas dizem, entenderemos o que ela considera ser arte. Dessa forma, será possível apresentar algum argumento para ir em oposição a essa visão reducionista e empobrecida de que a moda não é um tipo de arte propriamente dita.
Primariamente, o artesão, artista ou artífice, que a Bíblia no original chama de hakam ou sophós,²⁸ diz respeito a alguém cheio do espírito de sabedoria para exercer uma habilidade. A despeito dessa habilidade, Líndez pontua de uma forma precisa:
O que acabamos de dizer a respeito da habilidade e destreza manual como sabedoria prática segundo a Sagrada Escritura vai ser aplicado concretamente às pessoas dotadas de habilidade e destreza, que, portanto, são e se chamam sábios ou, em termos mais concretos, artífices, artistas, artesãos. […] Assim, pois, o significado mais próximo e de fácil apreensão de sabedoria/sábio é descoberto nas atividades manuais do homem em sua tarefa diária e normal, em sua habilidade no trabalho ou ofício que desempenha.²⁹
Precisamente, um dos meios que o autor utiliza para sustentar o que está dizendo é através das palavras na língua original. Segundo a própria etimologia, o que ratifica o indivíduo como um artista ou artesão está exatamente nas suas atividades manuais diárias, algo que aquela pessoa está habituada a fazer como ofício todos os dias. Somente essa frase já daria respaldo para refutar a argumentação de que a arte está distante de qualquer atividade diária e com qualquer ligação com o cotidiano. Porém, faço uso ainda das palavras de Rookmaaker, sendo outro nome que, assim como Líndez, nos dá suporte para acreditar:
Em muitas culturas, incluindo a nossa, antes do novo período que começou entre 1500 e 1800, os artistas eram principalmente artesãos. […] Os artistas eram exímios trabalhadores que sabiam como entalhar uma imagem, pintar uma Madona, construir um baú, fazer um portão de ferro fundido, produzir um candelabro de bronze, tecer uma peça de tapeçaria, trabalhar em ouro ou prata, fazer uma sela de couro, e assim por diante. Eles eram membros de associações de classes, assim como outros trabalhadores habilidosos.³⁰
Posto isso, fica clara a compreensão de que artistas, artesãos ou artífices são indivíduos dotados de habilidades que são manifestas em suas atividades cotidianas, em seus ofícios diários. Agora, falando a respeito da construção do vestuário e da função do alfaiate: as Escrituras ainda dão respaldo para acreditar que a tarefa do artesão se aplica de igual modo?
A narrativa bíblica do livro do Êxodo conta que, quando o povo deixa o Egito rumo à Terra Prometida, eles caminham por quarenta anos no deserto do Sinai. Ali, Deus chama seu servo Moisés para construir a tenda sagrada, o lugar onde Deus habitaria no meio do seu povo. Para a construção deste tabernáculo, há diversos direcionamentos arquitetônicos e de como as coisas deveriam funcionar no que tange às cerimônias cúlticas. O mais interessante em toda essa narrativa é que ele faz uso de um capítulo inteiro detalhando o modo como as vestes sacerdotais deveriam ser. E relata da seguinte forma:
Traga para junto de você, do meio dos filhos de Israel, o seu irmão Arão e os filhos dele, para que me sirvam como sacerdotes, a saber, Arão e seus filhos Nadabe, Abiú, Eleazar e Itamar. Faça vestes sagradas para o seu irmão Arão, para que lhe deem glória e beleza. Diga também a todos os homens hábeis a quem enchi do espírito de sabedoria, que façam vestes para Arão para consagrá-lo, para que me sirva no ofício sacerdotal. As vestes que farão são estas: um peitoral, uma estola sacerdotal, uma sobrepeliz, uma túnica bordada, mitra e cinto. Farão vestes sagradas para o seu irmão Arão e para os filhos dele, para que me sirvam como sacerdotes.³¹
“[…] lhe deem glória e beleza” é o primeiro ordenamento vindo do próprio Deus a despeito da vestimenta dos sacerdotes, validando a premissa de que as roupas carregam em si o encargo de manifestar glória e beleza. Outra autoevidência aqui é de que a estética é importante. Ela era de extremo valor para os sacerdotes em virtude de sua posição diante do resto do povo. Eles não eram como os outros israelitas, eram homens separados para representar Israel diante de Deus. Logo, a maneira de demonstrar essa diferenciação seria feita por intermédio das vestes, mas não qualquer delas; vestes que tivessem significado por meio da sua confecção. Vestes que expressassem “glória e beleza”. Agora, note-se que Aquele que concede a habilidade, o “espírito de sabedoria” para a confecção das vestes sagradas, é o próprio Deus (Êxodo 28.1-4). Desse modo, essa destreza em construir roupas que “demonstrem glória e beleza” é um tipo de sabedoria vinda do próprio Senhor de Israel. Logo, podemos concordar com os autores citados anteriormente de maneira que fica evidenciado canonicamente: A sabedoria de Deus é manifesta também por meio do trabalho artístico, sendo as roupas integrantes dessa categoria. A Bíblia explora isso claramente por meio desse – e não apenas esse – capítulo inteiro.
Finalizo objetivando que o exercício da construção do vestuário é um tipo de sabedoria utilizada no Antigo Oriente Próximo para retratar o trabalho artístico que tudo tinha a ver com os ofícios diários e cotidianos. Dessa forma, as roupas são, sim, um tipo de arte.
Agora, note-se que Aquele que concede a habilidade, o “espírito de sabedoria” para a confecção das vestes sagradas, é o próprio Deus (Êxodo 28.1-4). Desse modo, essa destreza em construir roupas que “demonstrem glória e beleza” é um tipo de sabedoria vinda do próprio Senhor de Israel.
O lugar dos criadores de moda em face das novas tecnologias para a criação de imagens
Assim sendo, fica reconhecido o lugar do ser humano como um ser dotado de potencial criativo, potencial este que, por meio da elaboração das roupas e do vestuário, colaboram para o desenvolvimento de um capital artístico cultural na história da humanidade. Ficamos com a premissa de que o ser humano é um ser que cria. Logo, a objeção que levanto aqui se dá no uso da Inteligência Artificial para a geração de imagens que se propõem a criar modelos de peças para a indústria têxtil, substituindo, dessa forma, o trabalho da equipe multidisciplinar de estilo. Tecnologias como o DALL-E³² não seriam autossuficientes na criação de looks, produções e até mesmo tendências de moda. Sendo eles enormes bancos de dados alimentados pelas próprias produções humanas, torna-se contraditório chancelar o uso de softwares como esse no desenvolvimento de padrões culturais artísticos, dos quais a moda faz parte, visto que o desenvolvimento cultural é feito por mãos humanas. Levanto a questão a respeito dos padrões normativos, éticos e de direitos autorais utilizados em tal processo tecnológico que permitem que as Inteligências Artificiais definam as tendências dentro do mundo da moda e, consequentemente, criem cultura.
Toda essa discussão torna possível uma breve comparação olhando para os anos 1970, quando a moda mais uma vez avançou em seus processos trazendo consigo o advento das fast-fashions. Esse modelo de negócio trouxe inúmeras alterações no que diz respeito aos padrões estéticos já antes estabelecidos pelas maisons, como vimos. O seu principal aspecto era a reprodução em massa da cópia de peças originais feitas pelas grandes marcas de moda. Produzia-se o mesmo modelo em um curto espaço de tempo – muitas vezes um dia depois do desfile –, porém, utilizando materias-primas inferiores e mão de obra – quase sempre análoga à escravidão. A grande contradição dentro desse modelo de negócio dizia respeito exatamente à originalidade e autenticidade das criações. O papel das fast-fashions era de observar uma tendência de moda na passarela e imediatamente reproduzi-la, invalidando, dessa forma, todo direito autoral e propriedade intelectual do designer que originalmente criou a peça. O que mudava muitas vezes era um detalhe ou outro, apenas para dizer que aquilo não era exatamente uma cópia. Ora, observando a IA e os seus padrões de funcionamento no que diz respeito à originalidade das criações que passam pelo seu sistema, torna-se possível relacionar as engrenagens das fast-fashions no seu desenvolvimento criativo à estrutura intrínseca de funcionamento da Inteligência Artificial. Eu diria, na verdade, que os softwares utilizados hoje na criação de imagens podem se equiparar, grosso modo, a uma evolução do modelo de cópia proposto pelos grandes magazines, obviamente guardadas as devidas proporções. O que importa aqui para os devidos fins é a observância do distanciamento do indivíduo no processo de criação.
A indústria têxtil tem se tornado cada vez mais um “copia e cola” de coisas já produzidas. Dessa forma, o capital intelectual e criativo humano, assim como o papel que os indivíduos ocupam no desenvolvimento cultural, acabam sendo postos em segundo plano. A verdade é que, a partir do momento que se valida o uso da tecnologia como um ser pensante, impondo sobre ela a responsabilidade do “criar” e, a partir das suas produções, ser uma guia para a sociedade, passamos a responsabilidade para redes neurais artificiais e as tiramos do ser que pensa. O potencial cognitivo humano passa a ser um mero coadjuvante nessa realidade; apenas um acessório passivo servindo para nos levar até a verdadeira inteligência, como afirma Bill Joy, cientista da computação e cofundador da Sun Microsystems:
[…] Na verdade, nosso futuro já está condenado, e a causa não será uma tomada de poder pelos robôs. […] Podem argumentar que a raça humana nunca seria tola o suficiente para entregar todo o poder para as máquinas. Mas não estamos sugerindo que a raça humana poderia voluntariamente dar o poder para as máquinas ou que essas máquinas poderiam levantar seu poder propositadamente. O que sugerimos é que a raça humana poderia facilmente permitir ser arrastada para uma posição de tamanha dependência das máquinas que não teríamos outra escolha prática senão aceitar todas as decisões delas. Como sociedade, nossos problemas se tornariam mais e mais complexos, da mesma forma que as máquinas se tornariam mais e mais inteligentes, então, pessoas deixariam máquinas tomarem ainda mais decisões para elas, simplesmente porque decisões feitas por máquinas trariam melhores resultados que as feitas por homens.³³
Diante dessa realidade, conclui-se que as profissões dentro da área moda tendem a desaparecer gradualmente com o avanço tecnológico:
A falta de costureiras no Brasil hoje é bem crítica, por exemplo. Há quem acredite que essa será uma profissão muito valorizada no futuro, mas eu particularmente acho que em pouquíssimo tempo nossas fábricas de roupas funcionarão como fábricas de automóveis, remédios e cosméticos (BMW e Bayer são exemplos), dominadas pela inteligência artificial, com linhas de produção quase inteiramente automatizadas. Veremos máquinas e robôs que cortam tecidos, modelam, costuram, separam, empilham […].³⁴
Uma queixa frequente nos últimos anos tem sido de designers e estilistas que vêm sendo substituídos por modelistas dentro das marcas. Por causa da cópia de peças, e não da criação de novos modelos de fato, as confecções não necessitam mais de mentes criativas, mas apenas de ofícios que sejam capazes de reproduzir os protótipos. Ora, o que se vê aqui com o uso das novas inteligências é muito próximo. E embora o DALL-E e outros exemplos de Inteligências Artificiais para a formulação de imagens sejam capazes de reunir informações criadas anteriormente pelos indivíduos, remodelando-as, elas nada mais são do que a reprodução de dados já existentes. É um círculo vicioso ad infinitum, em que não se forma nada novo verdadeiramente.
O que deixo aqui como provocação é a necessidade de um retorno à criação, ao sentimento e à visão que a Inteligência Artificial não consegue reproduzir.³⁵ Assim, se poderá promover um aumento na valorização da criatividade no todo social, pensando o capital cultural humano de maneira a preservá-lo, e usar a moda e a sua influência na indústria como motor propulsor para isso.
E embora o DALL-E e outros exemplos de Inteligências Artificiais para a formulação de imagens sejam capazes de reunir informações criadas anteriormente pelos indivíduos, remodelando-as, elas nada mais são do que a reprodução de dados já existentes. É um círculo vicioso ad infinitum, em que não se forma nada novo verdadeiramente.
Considerações finais
Finalizo enfatizando que a identidade é um importante conceito dentro da teoria de moda. Procuramos identidade no corpo, e as roupas são uma continuação imediata dele.³⁶ Todavia, se temos softwares propondo maneiras de ser por meio de imagens criadas, looks, modelos virtuais, combinações, shapes, etc., que relacionam o universo fashion à realidade já existente, o que está sendo feito é de cunho cultural. No final, a identidade social está aos poucos sendo proposta por máquinas.
Diante desse cenário, penso que uma proeminente alternativa para o uso da Inteligência Artificial na indústria da moda seria pensar novos caminhos no que diz respeito à inovação e à sustentabilidade. Com a tecnologia avançando a passos largos, como vimos, considero importante o uso de agentes inteligentes³⁷ para criação de soluções dentro da indústria têxtil, minimizando o impacto causado pelas fast-fashions no meio ambiente, por exemplo. Creio que o caminho está em investir forças para tornar a moda mais sustentável, ética e responsável, assim como a marca Stella McCartney, em parceria com a Protein Evolution – uma empresa de reciclagem biológica –, produziram a primeira peça com tecnologia Biopure.³⁸ Eles transformam embalagens rígidas e resíduos têxteis industriais em poliéster de qualidade têxtil. Em seguida, a equipe de Stella McCartney transformou então o poliéster em fio e converteu-o num novo tecido adaptável para o uso.
Ora, se há tecnologias tão promissoras à nossa disposição, por que não usá-las de maneira correta para pensar as mudanças necessárias que a indústria da moda tanto carece? Que fique claro: isso não é uma caça às bruxas à tecnologia, mas uma forma alternativa de pensar o potencial dela por meio da inovação. Afinal, Deus redimiu as vestes de Adão e Eva antes de expulsá-los do Jardim, dando-lhes novas vestes feitas por Ele mesmo – podemos considerar o próprio Deus o primeiro estilista que já existiu.³⁹ A Bíblia mostra que a maneira com a qual ele confeccionou as roupas de pele foi intencional para o uso diário que suportasse a nova maneira que eles passariam a viver fora do jardim. Deus não desprezou a criação das roupas simplesmente porque elas foram feitas com o propósito errado e de uma maneira nada funcional; afinal, quanto tempo folhas durariam no corpo do ser humano debaixo do sol daquela região? Mas, pelo contrário, Ele redimiu o propósito delas criando vestes com design e funcionalidade; exatamente o trabalho dos artesãos. Não seria pertinente pensar que podemos, da mesma forma, corrigir erros nessa indústria por meio do uso de novas tecnologias empregadas da maneira correta? Creio que é só uma questão de ajustar o foco.
Afinal, Deus redimiu as vestes de Adão e Eva antes de expulsá-los do Jardim, dando-lhes novas vestes feitas por Ele mesmo – podemos considerar o próprio Deus o primeiro estilista que já existiu.